{30.7.05 . o sonho da borboleta}

A ideia de que toda a existência é discutível, de que toda a percepção pode ser enganadora, de que todo o juízo pode ser rebatido, de que toda a afirmação que parece objectiva encerra uma parte secreta de arbitrário, esta ideia corre pelo mundo desde os primeiros vestígios de pensamento.
Exite uma história Zen que ilustra bem o centro destas hesitações do espírito.
Um homem sonha que é uma borboleta. Voa de flor em flor, abrindo e fechando as asas, sem a menor lembrança da sua natureza humana.
Quando acorda, percebe com espanto que é um homem. Mas será ele um homem que acaba de sonhar que é uma borboleta? Ou uma borboleta a sonhar que é homem?
Diz-se que nunca conseguiu responder a esta pergunta.

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A longa história que se segue provém do Mahabharata. Situa-se no último canto do grande poema indiano.
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No fim da imensa batalha de Kurukshtetra, que durante dezoito dias opusera os Pandavas e os seus primos, os Kauravas, batalha ganha pelos Pandavas graças aos conselhos ardilosos de Krishna, voltou este para casa. Ia com a sua escolta para a cidade de Dvaraka, à beira-mar.
Ao atravessar um deserto recordou-se da presença de um eremita famoso, chamado Utanka, a quem exercícios de ascetismo particularmente difíceis tinham dado com o tempo, um poder prodigioso.
Krishna decidiu fazer um desvio para saudar o eremita. Este, que sabia que Krishna, algum tempo antes, se tinha apresentado como embaixador junto dos Kauravas para tentar preservar a paz, perguntou-lhe:
- Então? Foste bem sucedido na tua embaixada? Os Pandavas e os seus primos vivem, graças a ti, em paz?
- Não estás ao corrente?- perguntou Krishna que parecia admirado.
- Ao corrente de quê?
- Mas tivemos uma guerra!
- Uma guerra?
- Uma guerra terrível, pavorosa. Diz-se que há mais de cento e sessenta milhões de mortos. Foram utilizadas armas devastadoras. Centenas de reis estendidos no chão. O Universo inteiro foi ferido por um perigo de morte.
- Cento e sessenta milhões de mortos!- exclamou Utanka. – E tu não impediste o massacre!
- Nem a inteligência, nem o trabalho, nem a força do espírito podem mudar o destino. Deves sabê-lo bem, ó grande sábio.
O rosto de Utanka mostrou-se de repente rubro de cólera. Bradou:
- O quê! Não fizeste nada para impedir todos esses mortos!
- Fiz tudo o que podia – disse Krishna.
- Tu que podias impedir esta guerra, deixaste correr um rio de sangue! Sinto-me possuído pela raiva e agora vou-te maldizer! Porque tu podias tê-los salvo, mas no teu coração, sei-o, já tinhas condenado os Kauravas!
- Desejava a vitória dos Pandavas – disse Krishna – pois sou daqueles que defendem a vida contra a destruição. Recorri a tudo para obter esta vitória. Não recuei diante de nada, pois coloquei o que defendia acima de tudo. Mas nunca desejei a guerra.
- Mentes! – exclamou Utanka fora de si. – Uma vez mais, mentes! E agora vou-te maldizer!
- O eremita levantou o braço e abriu a boca para lançar uma maldição. E a força da sua maldição fazia tremer todas as criaturas.
Krishna deu rapidamente alguns passos atrás e disse a Utanka:
- Pára! Escuta! Vais cometer o erro mais grave da tua vida!
O eremita suspendeu por momentos a sua cólera.
- Conheço o poder irresistível que constróis na solidão desde a tua juventude – disse Krishna. – E não quero que o percas por uma maldição mal atribuída. Vou fazer por ti uma coisa que faço poucas vezes. Vou-te mostrar quem sou. Olha para mim.
Então Krishna, imóvel no deserto, olhos semicerrados e a boca entreaberta, mostrou a Utanka a sua forma universal. Utanka viu todas as criaturas numa criatura, viu o silêncio e a luz, a morte e a vida, viu remoinhos incompreensíveis do tempo, viu todos os mundos num ponto.
- Estou deslumbrado – disse o eremita caindo de joelhos na terra ressequida. – Estou deslumbrado e calmo. Agradeço-te
- Quero conceder-te um favor – disse-lhe Krishna retomando a sua forma doce e benevolente. Que desejas?
- Nada desejo. Ver-te basta-me.
- Já te disse – continuou Krishna com alguma insistência – quero conceder-te um favor. Diz-me o teu desejo.
O eremita que adivinhava uma armadilha, reflectiu um momento antes de dizer:
- Pois bem, vivo como vês, nestas terras desoladas e sucede que me falta a água. Faz com que encontre água sempre que tiver sede.
- Concedido – diz Krishna.
E seguiu o seu caminho.
Uns anos mais tarde, caminhando no deserto, a garganta fustigada pela sede, Utanka lembrou-se da promessa de Krishna e chamou-o.
Imediatamente ouviu um ruído terrível e viu surgir diante de si um personagem assustador, uma espécie de caçador que logo reconheceu ser um homem da classe mais baixa, inteiramente nú, peludo, cabeludo, ferozmente armado, muito sujo, coberto de suor e baba, os olhos tingidos por clarões vermelhos, rodeado por uma matilha de cães uivantes.
Este homem segurava o seu enorme pénis nas mãos, de onde saía urina com abundância.
Olhou para Utanka e disse-lhe rindo:
- Tens sede? Toma, bebe.
- O quê? – exclamou o eremita todo a tremer.
- Tenho muita pena de ti – disse o selvagem rindo. – Aceita esta água.
Utanka sentiu-se invadido por uma cólera desconhecida a que se misturava o sentimento de uma grande vergonha.
- propões-me a tua urina? – disse ele com voz trémula.
- Sim, já que tens sede.
Então Utanka cedeu ao seu carácter irascível. Animado do furor mais brutal proferiu insultos inauditos, batendo com os pés sem sair do sítio. Mas o caçador rebentou a rir e desapareceu com os seus cães uivantes.
Incapaz de recuperar a calma, o eremita retomou o seu caminho, a garganta abrasada. Um pouco mais longe, ao passar uma duna, encontrou de súbito Krishna, que avançava para ele sorrindo. Lançou-lhe a mais dura reprimenda.
- Como pudeste quebrar a tua promessa? Como pudeste zombar de mim, oferecer-me urina de um vulgar caçador?
- Esse caçador era eu! Mas não me reconheceste. O que te oferecia para beberes era o néctar da imortalidade. Mas tu és mortal Utanka, e um mortal não pode tornar-se imortal. Por isso não pudeste compreender-me. Rejeitaste-me, e comigo o néctar. Adeus Utanka. Nunca mais terás sede, pois to prometi, mas continuarás sujeito à morte.
Krishna afastou-se.
Utanka nunca mais o veria. Viveu ainda por muitos anos, passou por singulares aventuras. Mas no fundo do seu coração guardava uma tristeza imensa, pois sabia que tinha perdido a ocasião. E, no entanto, em todos os lugares, era constantemente seguido por uma massa de nuvens negras que lhe traziam chuva quando a desejava. Chamavam-lhes «as nuvens de Utanka» e os habitantes gritavam de alegria quando elas apareciam no céu do deserto.

[A Índia tem vindo a ser fustigada pelas monções deste ano como há muito tempo não acontecia. Muitas pessoas têm morrido e muitas outras tudo perderam.
Será Krishna a fazer-nos lembrar que somos meros mortais?]


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{29.7.05 . clandestino bar}

É bom fazer publicidade a algo que se gosta!
Um dos meus lugares favoritos na noite de Aveiro tem também o seu lugarzinho marcado na imensa blogosfera.
Salta imediatamente para os favoritos no local do costume ( ... é mesmo ali ao lado!)
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{26.7.05 . }

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{23.7.05 . calma}

Tenho fome do teu olhar quieto na véspera de um beijo. Quieto como a calma do vento durante a tempestade, ou quieto como quem escuta o seu interior?
Penso no que dizes, de ensinar-te a amar, a cuidar… cuidas tanto de mim, cuidas de mim existindo, cuidas de mim no silêncio e no grito, na presença e no recolhimento. Também nisso nasceste ensinada.
O curso do teu rio (o rio abaixo do rio) é límpido e puro como a tua voz, e saio purificado quando nele me banho. A névoa, as cinzas em vez de fogo que dizes sentir, são encruzilhadas e não ruas sem saída. Podes dizer que tens uma vida deserta, mas essa é apenas ínfima na superfície: por baixo és imensa!
Sim, podes dizer que és um ser das profundezas e não dos céus abertos, que a vida não te corre ampla. Sim, podes dizer que andas toda engomada quando gostas de vestidos largos e amarrotados. Nunca porém poderás dizer que a luz dos teus olhos se apagou para sempre. Não se reprimem os relâmpagos nem o céu de luzir.


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Por vezes, quando os dias duram meses, sinto-me como a chama a quem falta o oxigénio, treme e desaparece por instantes, ou o cacto perdido na moita seca que dá sinais de quebrar mas que por um instante de vida, uma única gota de água se torna como o verde que surge através da neve.
O fogo é a metáfora eleita do amor, mas será mesmo que arde sem se ver? É que o teu cabelo fica como labaredas, a tua pele ruboresce e nota-se mais porque tu és branquinha.


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Olho para as letras aqui em baixo e só me apareces tu. Um poema em forma de ti, um beijo em forma de ti. Era bom que estivesses comigo à pouco quando o sol voltou do seu exílio da tarde, afastou as nuvens e disse a uma plateia boquiaberta “ não há ninguém mais bonito do que tu” e ninguém se atreva a desmentir-me, haverá duelo, duelo ao sol. Nietzsche ccostumava dizer que o homem não pode viver sem mentiras. Não pode viver com a verdade: a verdade é insuportável. Mas quem se pode atrever a julgar o que sinto, e não importa que seja só meu, só eu a sentir isto. Insuportável é nada sentir e estares longe de mim. Podemos governar-nos muito bem neste mundo sem estrelas, bússolas ou mapas. Basta seguir o pássaro da alma e os pássaros não mentem. E o amor? Achas que sabemos se é verdadeiro pela água que nos salta dos olhos? Já chorei lágrimas que ferviam quando me senti em comunicação perfeita contigo, que deixei de existir sendo. Foi uma vez que perguntaste “ onde existo que não existo em mim?”
Como tudo encaixa, como tu encaixas em mim…ou não, nem sei…só sei que gosto assim e estou disposto a entregar-me com os olhos postos no céu e aguardar o sopro quente do amor no meu pescoço.
- Importas-te que seja no corpo inteiro e do avesso e em pino e com bochechas de trompetista?


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{22.7.05 . palavras simples}

Lia em voz alta,

Um poema para ti.
Um simples desejo de me oferecer
(e germinar este amor de palavras simples)

A ti que me fazes nascer poemas.

Enquanto não as encontro e enquanto não as escrevo
Aceita este poema que ainda não o é.

Do desejo de te escrever poemas de amor com palavras simples.

Na cama das suas noites, nessa noite antecipada de Inverno, este
Era o começo do resto das suas noites.

Lia em voz alta, dizia, estava sózinha, verdade seja dita,
Nunca ninguém está verdadeiramente só.

Deixou há muito de se lembrar que por trás de uma emoção intensa,
Vem sempre uma espiral.

Era para ser só mais uma noite mas tornou-se numa noite a mais.
Uma noite a mais nas recordações das suas mais belas noites.

O amor vive-se à noite quando se tem trinta anos,
Dirá mais tarde.

Não há dia que devolva o que a noite não inspira.

Lembro-me dos amores de dia, os amores do tempo,
Os amores da inocência.

Os que não têm medo de serem amores.
Talvez por serem de dia.


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Levei comigo uma mala porque me disseram que era isso que se fazia quando se partia em viagem. Levei comigo uma mala vazia, não porque não tivesse nada de meu, mas porque nada do que tinha parecia precisar de mim para sobreviver. Fechei a porta atrás de mim, não me lembro de a ouvir bater, não olhei para trás. Hoje gosto de imaginar que a porta não se fechou, que a deixei entreaberta e a escancarou o vento num dia de tempestade, transformando-a num abrigo para animais selvagens e ervas daninhas. Imagino-a imponente no seu revestimento, as janelas partidas, a porta aberta de par em par e as ervas espreguiçando-se do chão até ao tecto como num templo hindú abandonado. Lá dentro, as sombras e as borboletas e os vermes, pequenos, viscosos. É assim que vejo a casa na minha imaginação, todas as coisas espalhadas pelo chão, cartas, segredos, fotos, roupas. Tudo o que deixei para trás e que me sobreviverá. Os livros abertos no chão com as páginas voltadas para baixo como se os lessem os que habitam debaixo das tábuas de madeira. Caminhei sempre pela estrada, segui a linha branca pintada no chão, como se ali estivesse para me indicar o caminho a seguir. Voltarei ao lugar de onde parti. A casa espera-me.
Trago comigo um pouco de tudo, trago comigo a memória de tudo. Não parti em busca de nada nem de ninguém, procurava apenas o movimento, a deslocação. Sentir todos os elementos a passar por mim como uma rajada de vento, nada permanente, nada que me obrigasse a ficar, como eu gosto.
Quando voltar estarei igual, toda a transformação será superficial, a casa saberá ver além das aparências, ela irá reconhecer-me imediatamente e deixará que eu morra nos seus braços. Eu e a casa, somos uma e a mesma coisa: simples embalagens ocas que aguardam a imobilidade da satisfação: morrer como uma gota de água na película gelada de um rio.


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{7.7.05 . o poeta aprendiz}

Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante
Anos tinha dez
E asas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc
O olhar verde gaio
Parecia um raio
Para tangerina
Pião ou menina
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava o mergulho
Sem fazer barulho
Em bola de meia
Jogando de meia-direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar
Amava era amar
Amava Leonor
Menina de cor
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Com beijos e rimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita
Por isso sofria
De melancolia
Sonhando o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser

Vinicius de Moraes


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{2.7.05 . é só mais um detalhe}

Uma música que tem andado cá dentro e que não sái nem por nada:


Gal Costa-"Detalhes"
by Roberto Carlos/ Erasmo Carlos

Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito tempo em sua vida eu vou viver

Detalhes tão pequenos de nós dois
São coisas muito grandes pra esquecer
E a toda hora vão estar presentes
Você vai ver

Se um outro cabeludo aparecer na sua rua
E isso lhe trouxer saudades minhas, a culpa é sua
O ronco barulhento do meu carro
A velha calça desbotada ou coisa assim
Imediatamente você vai lembrar de mim

Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido
Palavras de amor como eu falei, mas, eu duvido
Duvido que ele tenha tanto amor
E até os erros do meu português ruim
E nessa hora você vai lembrar de mim

A noite envolvida no silêncio do seu quarto
Antes de dormir você procura o meu retrato
Mas na moldura não sou eu quem lhe sorri
Mas você vê o meu sorriso mesmo assim
E tudo isso vai fazer você lembrar de mim

Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada
Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada
Pensando ter amor nesse momento, desesperada, você tenta até ao fim
E até nesse momento você vai lembrar de mim

Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada
Do tempo que transforma todo amor em quase nada
Mas quase também é mais um detalhe
Um grande amor não vai morrer assim
Por isso, de vez em quando você vai lembrar de mim

Não adianta nem tentar me esquecer
Durante muito e muito tempo em sua vida eu vou viver


str8splash blogged on 2.7.05

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O que uma pessoa faz para ser original! Paciência.







EmilyStrange.com